Antas do Cerrado inspiram pesquisas sobre saúde humana e pesticidas

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Antas: as jardineiras das florestas, inspiram estudos sobre saúde humana

A Anta, um herbívoro grande, de vida longa e de grande alcance, que se alimenta de uma grande variedade de plantas, sementes e frutos, é considerada importante dispersora de sementes, a jardineira das florestas. Uma espécie sentinela, transitando por diversas paisagens ao longo de suas jornadas e mantendo a integridade da diversidade das florestas.

Como vive em diversos biomas brasileiros: Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia e Pantanal, é um indicador do ambiente ao seu redor e atua como uma espécie sentinela, passando por várias paisagens ao longo de suas jornadas. O que a anta experimenta, outras espécies também experimentam, inclusive os seres humanos. Por isso passou a inspirar pesquisas sobre saúde humana e pesticidas.

Os estudos tiveram início em 2015 quando pesquisadores da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab) tentavam capturar antas (Tapirus terrestris) no Cerrado, para instalar coleiras de monitoramento para estudar a espécie, perceberam que a anestesia não estava funcionando e, por isso, tiveram que suplementar as doses para que o procedimento fizesse efeito. Isso intrigou a equipe.

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Anta brasileira inspira pesquisas sobre saúde humana e pesticidas da Incab

Na época, os pesquisadores levantaram a hipótese de que algo no corpo das antas estava interferindo na anestesia. Descobriram que a exposição do animal a pesticidas, estava ligada a alterações no processo metabólico.

Patrícia Médici, co-fundadora do IPÊ, coordenadora da Incab e uma das maiores especialistas em antas do mundo, explicou que a dosagem necessária de anestesia para um animal depende de sua taxa de metabolismo. Ela enfatiza a importância de órgãos como o fígado e os rins nesse processo, afirmando: “Se esses órgãos estão lesionados, o metabolismo acontece de uma forma diferente, o que leva, então, esse processo de anestesia a ocorrer de uma forma diferente”.

Em um estudo realizado entre 2015 e 2017, que envolveu a necropsia de antas mortas em acidentes de trânsito na região, os pesquisadores da Incab encontraram evidências que ajudaram a confirmar a suspeita. “O que a gente mais encontrou foram as lesões de fígado, as lesões de rins e lesões também estomacais”, diz a pesquisadora Médici.

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Antas do Cerrado inspiram pesquisas sobre saúde humana e pesticidas coordenada por Patrícia Médici

As descobertas sobre as antas levaram os pesquisadores a coletar amostras biológicas de cerca de 100 moradores das proximidades, e mais de 30 pessoas apresentaram resultados positivos para algum tipo de pesticida, com mais de um produto químico presente em alguns casos. O agrotóxico mais utilizado no Brasil, o glifosato, foi encontrado em mais de 20 pessoas.

Uma descoberta super importante feita pela engenheira florestal Patrícia Médici, cientista e coordenadora da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab), que há mais de 30 anos dedica sua vida à ciência, preservação da fauna brasileira e conservação da anta. Um trabalho de fundamental importância que lhe rendeu em 2020 o grande prêmio Whitley Gold Awards – também conhecido como Óscar da Conservação.

Pela dedicação e atuação extraordinárias nas últimas décadas, Patrícia acaba de estar entre as cinco pesquisadoras do mundo todo homenageadas com o título “2024 Women of Discovery“, concedido pela organização internacional WINGS, que promove e financia o trabalho de mulheres pioneiras em suas áreas. “O prêmio WINGS Women of Discovery foi criado em 2003 para reconhecer mulheres extraordinárias que fazem contribuições significativas para o conhecimento mundial e a ciência através da exploração“, informa a organização.

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Patrícia Médici: renomada pesquisadora brasileira que recebeu o maior prêmio de conservação ambiental do mundo agora coordena estudo sobre saúde humana

O trabalho feito por tão importante personalidade, divulgado em um relatório técnico em fevereiro, será em breve publicado em revista científica. A pesquisa mostra como os animais estão fornecendo informações e inspiração para estudos com humanos, o que é mais um exemplo da importância dos animais para o planeta e para as pessoas. As descobertas enfatizam que o estresse sofrido pelo maior mamífero terrestre da América do Sul também é evidenciado nos humanos.

O relatório técnico da Incab revelou que além das antas há contaminação humana significativa por pesticidas na região do Cerrado do Mato Grosso do Sul e isso é muito grave.

A recente pesquisa da Incab em humanos foi realizada em uma área de 2.200 quilômetros quadrados, a mesma área onde foi realizado o estudo com as antas, nos municípios de Nova Alvorada do Sul e Nova Andradina, no Mato Grosso do Sul. A Dra. Médici caracteriza a área como um “grande mosaico”, abrangendo vários usos da terra, desde plantações de eucalipto e rodovias até grandes fazendas do agronegócio, com a cana-de-açúcar como cultura predominante, bem como assentamentos onde é praticada a agricultura familiar em pequena escala.

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Anta em área de transição entre o Cerrado e a Amazônia, no norte do Mato Grosso

Durante um período de uma semana em 2023, os pesquisadores coletaram amostras biológicas, como sangue e urina, de 94 moradores, principalmente pequenos produtores rurais envolvidos na agricultura e pecuária, com idades entre 19 e 73 anos, em áreas próximas ao local no qual antas contaminadas por agrotóxicos haviam sido encontradas anos antes. Os participantes do estudo também passaram por uma consulta e foram entrevistados para identificar possíveis contatos anteriores ou atuais com pesticidas.

A pesquisa revelou ainda a contaminação por metais pesados em 22 dos 94 indivíduos amostrados, tendo18 testado positivo para mercúrio e quatro para cobre. O último apresentou concentrações que excederam o limite máximo esperado, conforme declarado pela Incab. “O limite de cobre no sangue humano pode variar entre 60 e 140 ug/dL”, afirma a Incab em um comunicado à imprensa, citando referências do Centro de Assistência Toxicológica. “Um dos positivos para esse metal atingiu 223 ug/dL”, acrescenta.

O médico Maurício Antônio Pompilio, doutor em doenças infecciosas e professor da Faculdade de Medicina da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), durante videochamada da qual a cientista Patrícia Médici também participou, confirma a hipótese levantada durante o estudo inicial que detectou agrotóxicos nas antas do Cerrado e nas pessoas. “Tanto o animal silvestre quanto o ser humano estão expostos, estão sendo intoxicados”.

Como membro da equipe multidisciplinar autora do recém-publicado relatório da Incab sobre a contaminação por pesticidas, o doutor em doenças infecciosas afirma que, a contaminação humana pode ter ocorrido tanto individualmente, durante o trabalho agrícola sem o uso adequado de equipamentos de proteção individual, quanto coletivamente, influenciada por culturas de grande escala, como a cana-de-açúcar e a soja onde é observado principalmente através de relatos da população de que “de fato aeronaves fazem a pulverização em áreas próximas”.

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Anta brasileira inspira pesquisas sobre saúde humana e pesticidas

O professor Pompilio, da Faculdade de Medicina da UFMS, destaca que a contaminação por agrotóxicos pode afetar o fígado, os rins e o trato gastrointestinal, causando sintomas como náuseas, vômitos e diarreia. “Sem contar, por exemplo, a própria irritação da pele, dos olhos”.

E alerta: o sistema nervoso e a função motora muscular também sofrem significativamente, podendo levar a consequências graves, incluindo coma ou morte. O pesquisador também enfatiza que alguns pesticidas “facilitam o desenvolvimento do câncer no organismo”.

Um exemplo importante é o glifosato, que a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer da OMS (Organização Mundial da Saúde) classifica como possivelmente carcinogênico para os seres humanos. O glifosato é o principal ingrediente do Roundup, um produto fabricado anteriormente pela Monsanto. A empresa, agora extinta, está envolvida em vários processos judiciais alegando que seu herbicida é responsável por causar câncer.

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Anta do Cerrado inspira pesquisas sobre saúde humana e pesticidas

Infelizmente a pulverização aérea de pesticidas é uma prática comum há muito tempo em todo o mundo. O Brasil é líder mundial no uso de pesticidas, segundo dados de 2021 da FAO. Naquele ano, o país utilizou mais de 719 mil toneladas de pesticidas, seguido de perto pelos Estados Unidos, com mais de 457 mil toneladas.

A ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, diz que a aprovação de um projeto de lei que flexibiliza o uso de agrotóxicos no Brasil pode agravar situações como as relatadas pelos pesquisadores. Ela diz que o Brasil usa pesticidas em excesso e argumenta que deveria haver um controle mais rigoroso sobre seu uso, bem como sobre seus efeitos na vida selvagem. “O problema é que a legislação se tornou mais flexível no lugar de mais rígida”, diz ela, referindo-se à aprovação, no final de 2023, do PL 1459/2022, conhecido como “PL do Veneno”, que permitiu maior flexibilidade no uso de agrotóxicos.

O projeto, prioritário da bancada ruralista, flexibiliza as restrições à venda e ao uso de uma ampla gama de agrotóxicos, muitos dos quais podem causar doenças, mutações e alterações hormonais. Ele também relega a aprovação de novos agrotóxicos a uma análise de risco, que especialistas como Araújo dizem não ter conhecimento de como será realizada.

A pesquisadora defende que deve haver uma discussão séria sobre os níveis seguros de exposição a pesticidas no Brasil, bem como os limites de detecção dessas substâncias na água e nos alimentos consumidos no país. “Essa discussão é urgente; é para ontem, precisa acontecer.”

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Anta do Cerrado inspira pesquisas sobre saúde humana e pesticidas

Suely Araújo, que afirma que a aprovação do PL do Veneno pode piorar situações como as relatadas pelos estudos da Incab, é enfática. “Estamos falando do direito à vida dos animais, mas das pessoas também”. E ela tem razão pois pesquisa recente revela contaminação por pesticidas em humanos que vivem em áreas próximas aos locais nos quais aeronaves pulverizam campos agrícolas.

A recente pesquisa da Incab exemplifica como os seres humanos não estão separados do meio ambiente e, consequentemente, do impacto de seu avanço sobre áreas naturais. Em uma paisagem compartilhada, investigação sobre uma espécie pode levar a descobertas sobre outra. Nesse caso, aspectos da saúde humana foram revelados a partir de aspectos da saúde da anta.

A Anta serve como um indicador do ambiente ao seu redor e atua como uma espécie sentinela. O que a anta experimenta, outras espécies também experimentam, inclusive os seres humanos.

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Patrícia Médici: protetora da anta brasileira, a jardineira das florestas, coordena estudo sobre saúde humana e pesticida

No Cerrado, por exemplo, a Anta é classificada como Em Perigo (EN), a espécie enfrenta inúmeras ameaças, incluindo a caça para carne e outros fins; perda de habitat devido à conversão de paisagens naturais para pecuária e cultivo de culturas como soja, cana-de-açúcar e milho; incêndios florestais; atropelamentos; e, conforme demonstrado pela Incab, contaminação por pesticidas.

De acordo com o MapBiomas, até 2022, metade do Cerrado já havia sido significativamente alterada por atividades humanas, em comparação com apenas cerca de 15% no Pantanal. Todo esse cenário impõe desafios à sobrevivência da T. terrestris, sendo um deles a fragmentação de habitat.

Fotos: Victor Sanches/Incab/IPÊ e Luiz Claudio Marigo