OPINIÃO: Autorização de Witzel é ilegal e coloca os policiais em risco

Texto: Gilbert Di Angellis

O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, apresentou, durante as eleições, promessa de que, em seu governo, a polícia teria autorização para abater qualquer indivíduo que fosse flagrado portando fuzil. O pacto firmado com seus eleitores foi tratado como prioridade em seus primeiros dias à frente do Palácio Guanabara.

BOPE

A proposta de Witzel vem de encontro com os anseios da sociedade carioca, que sofre com a violência urbana e, naturalmente, tem pouca simpatia com as facções criminosas que comandam o tráfico de drogas na região. Entretanto, é cediço que a administração pública deve agir em consonância com a legalidade. Diante disso, se passa a examinar o projeto de Witzel estritamente sob o enfoque jurídico.

De acordo com o governador, que é ex-juiz federal, “a autorização [legal] está no artigo 25 do Código Penal: o policial estaria agindo em legítima defesa de si próprio e da sociedade para repelir uma agressão iminente. Não é sair atirando para matar. Acontece que quem está portando uma arma de guerra certamente não está disposto a conversar ou negociar com as forças policiais e está na iminência de matar pessoas inocentes. Como professor e conferencista de Direito Penal há muitos anos, esta é a minha posição. Como governador, vou orientar que os policiais ajam desta forma, exatamente nos termos da lei. Mas a polícia será mais bem treinada e preparada, as operações serão mais cirúrgicas e filmadas, para evitar ilegalidades”.

No entanto, com a devida vênia ao ex-magistrado e atual político, a sua interpretação acerca do artigo 25 do Código Penal, que trata da legítima defesa (excludente de ilicitude), é absolutamente desacertada. A referida legislação fala em uso moderado dos meios necessários e agressão iminente, elementos que devem ser analisados em cada caso, não havendo a possibilidade de concluir que a lei autoriza matar qualquer um que porte um armamento dessa natureza.

Nesse sentido, várias são as decisões judiciais que condenam (ou confirmam a condenação na esfera recursal) de modo a afastar a tese de legítima defesa quando não preenchidos os requisitos legais. In verbis:

Ementa do Tribunal de Justiça de São Paulo
DISPARO DE ARMA DE FOGO – Autoria certa e incontestável – CONFISSÃO – Não configurado a legitima defesa. Ausência de comprovação de conduta moderada, agressão injusta e atual. RECURSO NÃO PROVIDO.
[TJ-SP – APL: 00012349820078260607 SP 0001234-98.2007.8.26.0607, Relator: Ruy Alberto Leme Cavalheiro, Data de Julgamento: 14/02/2017, 3ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 14/02/2017]

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Ementa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
Lesão corporal. Violência doméstica. Legítima defesa. 1 – Nos crimes praticados em situação de violência doméstica e familiar, na maioria das vezes sem a presença de testemunhas, a palavra da vítima tem especial relevância, sobretudo quando corroborada pelo laudo de exame de corpo de delito. 2 – Não há legítima defesa se não utilizados moderadamente os meios necessários para repelir injusta agressão. 3 – Apelação não provida.
[TJ-DF 20160210040988 DF 0004022-70.2016.8.07.0002, Relator: JAIR SOARES, Data de Julgamento: 05/07/2018, 2ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 11/07/2018 . Pág.: 95/134]

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Ementa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Embargos de Declaração. Alega o embargante que o acórdão incorreu em contradição e omissão, na medida em que deixou de enfrentar questões relevantes para a sua defesa. O acórdão não padece dos defeitos elencados no art. 619, do Código de Processo Penal, assim como o recurso não se presta para rediscutir questão meritória, com o fim de modificá-la em sua essência ou substância, até porque foram enfrentadas todas as teses articuladas pela defesa. No caso concreto, especificamente, quanto à tese da excludente de ilicitude da legitima defesa, tal inconformismo não procede, eis que demonstrado no acórdão embargado quais foram as provas que nortearam o entendimento ali exposto e as razões que levaram o Colegiado a manter a condenação do embargante. Entendeu o Colegiado que quem lança uma barra de ferro contra alguém não pode alegar que usou de meios necessários e muito menos de forma moderada para conter injusta agressão e, pelo que as testemunhas declararam e os laudos comprovaram, a vítima estava de costas, o que autoriza a conclusão de que a agressão já havia cessado. Afronta ao artigo 155 do CPP. Inexistência. No mais, o que pretende o embargante, na realidade, é modificar o decisum embargado, o que é impossível, vez que refoge ao âmbito deste recurso a análise de tal matéria, não se prestando os Embargos para rediscutir o julgado, objetivando modificá-lo em sua essência ou substância. Embargos desprovidos.
[TJ-RJ – APL: 03609536320118190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 33 VARA CRIMINAL, Relator: MONICA TOLLEDO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 18/08/2015, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 24/08/2015]

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Ementa do Tribunal de Justiça da Paraíba
APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. LEGITIMA DEFESA. TESE DEFENSIVA. ABSOLVIÇÃO. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. ACOLHIMENTO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA EXCLUDENTE. SUBMISSÃO A NOVO JULGAMENTO. PROVIMENTO DO APELO. Para que se configure a excludente da legitima defesa, indispensável que estejam presentes seus requisitos: agressão injusta, atual ou iminente, uso moderado dos meios e que não haja excesso culposo ou doloso, de modo que, ausente a comprovação de que estava sendo injustamente agredido e usou moderadamente dos meios necessários, o seu acolhimento torna-se inviável. É possível a cassação da decisão proferida pelo Conselho de Sentença quando ela acolhe uma versão que não encontra suporte na prova dos autos, pois não é de se admitir que a conclusão dos jurados seja divorciada do contexto probatório.
[TJ-PB 00362207720178150011 PB, Relator: ALUIZIO BEZERRA FILHO, Data de Julgamento: 13/12/2018, Câmara Especializada Criminal]

Como se verifica da jurisprudência colacionada – que é apenas uma parte entre tantas decisões que afastam a legítima defesa em casos onde a reação não se mostra moderada e/ou a agressão não é iminente –, a tese jurídica defendida pelo governado é amplamente contrária à legislação pátria e à jurisprudência.

Diante da polêmica sobre o assunto, vários criminalistas de renome se manifestaram no sentido de que a proposta do governador é manifestamente ilegal. Entre eles, Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e advogado, Reinaldo Santos de Almeida, advogado e professor de Criminologia e Direito Penal da UFRJ, e Gustavo Badaró, advogado e professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo (USP).

Mesmo assim, o governador tem reafirmado o discurso de que a legislação penal autoriza o abate nas circunstâncias descritas. Como consequência, assegurou aos policiais que terão todo o apoio jurídico necessário: “digo a vocês, policiais militares: não temam. Estará com vocês a Defensoria Pública para defendê-los. Os senhores terão os defensores para defendê-los. Serão protegidos”, garante o governador Witzel.

Desse discurso nasce o segundo ponto da presente análise: a ilegalidade da medida do governador coloca em risco os policiais que a seguirem. Por se tratar de uma ordem claramente ilegal, aquele que obedecer a instrução do governador estará sujeito às sanções legais, com responsabilidade de cunho cível, administrativo e criminal.

Como é cediço, o “desconhecimento da lei é inescusável” (art. 21 do Código Penal) e a obediência hierárquica só é excludente de culpabilidade quando não for “manifestamente ilegal” (art. 22).

Nessa esteira, Robson da Silva, advogado especialista em Direito Militar, assevera que “o Militar deve receber as ordens de seus superiores e as cumpri-las dentro do estrito cumprimento do dever legal e desde que essa ordem não contrarie o ordenamento jurídico em consonância com os fundamentos morais, profissionais, éticos”.

Inclusive, cumpre destacar que, a depender das condições do “abate”, é possível e provável que o policial responsável pelo disparo venha a responder por homicídio doloso qualificado (art. 121, § 2º, IV, do Código Penal), uma vez que a execução, conforme já exposto pelo governador, tende a ser efetuada por policiais especializados em tiros à longa distância (sniper), o que, por sua natureza, impede qualquer chance de defesa ao ofendido.

Portanto, é evidente a ilegalidade da medida proposta pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, o que coloca em risco os policiais que cumprirem tal orientação. A própria afirmação do político de que os militares contarão com o apoio jurídico necessário vem de encontro com a possibilidade iminente de responsabilidade dos policiais.

Texto: Gilbert Di Angellis.

Referências:

https://www.conjur.com.br/2018-out-30/proposta-witzel-abater-portador-fuzil-inocua-ilegal

https://extra.globo.com/casos-de-policia/secretario-da-pm-reafirma-politica-de-abate-se-marginais-portam-fuzis-opcao-deles-23342689.html

https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI279650,21048-Obediencia+hierarquica

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm

https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/370677913/apelacao-apl-3609536320118190001-rio-de-janeiro-capital-33-vara-criminal

https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/599967560/20160210040988-df-0004022-7020168070002

https://tj-pb.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/661709115/362207720178150011-pb

https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/431734928/apelacao-apl-12349820078260607-sp-0001234-9820078260607